Entre 2018 e 2021, o Ministério da Educação (MEC) aprovou 40 Projetos Pedagógicos de Cursos (PPCs) de graduação de Medicina Veterinária. Porém, segundo estudo realizado pela Comissão Nacional de Educação da Medicina Veterinária do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CNEMV/CFMV), nenhum desses possíveis novos cursos, pertencentes a instituições privadas, possui condições mínimas de funcionamento. Os dados foram obtidos por meio do Sistema de Regulação do Ensino Superior (e-MEC), a partir de um termo de colaboração firmado entre o conselho e o próprio ministério.

O levantamento motivou o ajuizamento de Ação Civil Pública (ACP) pelo CFMV em face da União, visando à suspensão dos processos e atos autorizativos relacionados a novos cursos e vagas na área da Medicina Veterinária por, no mínimo, 5 anos, ou até que seja possível verificar a qualidade dos cursos existentes e reformular os marcos regulatórios em termos compatíveis com a garantia de qualidade do ensino superior.

Uma das justificativas para judicializar a questão é o crescimento caótico dos cursos de graduação em Medicina Veterinária e o aumento indiscriminado das vagas oferecidas. Atualmente, são 536 escolas com autorização de funcionamento, 22 no modelo Ensino a Distância (EaD). No mundo, há 320 cursos superiores na área.

Se todos os 40 projetos forem adiante, representarão 6.190 novas vagas para futuros médicos-veterinários. Para se ter uma ideia, os Estados Unidos possuem 32 escolas de Medicina Veterinária, enquanto a Europa inteira reúne 95 e a China, 22. O crescimento vertiginoso fica ainda mais exposto quando, pelo próprio e-Mec é possível conferir que no Brasil, em 1980, havia 32 cursos de Medicina Veterinária. Em 2015, eles eram cerca de 200.

Outro fator pontuado na ACP menciona relatórios recentes do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apontando que o sistema de regulação e avaliação da educação brasileira constantes no Decreto nº 9.235/2017 e na Portaria nº 20/2017 são falhos, quer quanto à instituição das ferramentas e métodos de avaliação, quer quanto à avaliação propriamente dita, quer quanto à supervisão dos cursos e instituições.

Levantamento aponta fragilidades

“Estão colocando no mundo do trabalho jovens que, em sua maioria, não estão sendo formados adequadamente para lidar com vidas animais e humanas, considerando a importância da atuação médico-veterinária nas diversas áreas que impactam diretamente o bem-estar dos seres e do ambiente”, sinaliza a professora Maria José de Sena, presidente da CNEMV e ex-reitora da Universidade Federal de Pernambuco.

A comissão identificou vulnerabilidades no conteúdo programático e na qualificação do corpo docente, bem como verificou inconsistências de metodologia, gestão e infraestrutura. Os projetos pedagógicos foram considerados inexequíveis pela comissão por não atenderem as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) da Medicina Veterinária, atualizadas em 2019 pela Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE/MEC) nº 3.

O estudo é o desdobramento do trabalho iniciado pela comissão em agosto de 2020, quando avaliou 215 IES que participaram do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) 2019. O Enade avalia as instituições e os estudantes em conclusão de curso com conceitos mínimo e máximo, numa escala de 1 a 5. Na ocasião, a CNEMV aferiu que 144 IES avaliadas obtiveram notas entre 1 e 3.

Ao observar os baixos conceitos aferidos pelo Enade, a comissão passou a acompanhar as solicitações encaminhadas ao MEC entre 2018 e 2021. A CNEMV analisou os 40 processos disponíveis usando os mesmos instrumentos do Enade, em seis dimensões: pertinência, gestão do curso, metodologia e inovação, formação profissional, corpo docente e infraestrutura.

  • Pertinência: analisa a necessidade de se abrir o curso na região indicada no projeto, considerando o mercado a ser atendido. No caso, em todo o Brasil, são quase 54 mil profissionais inscritos e não atuantes. Só não se sabe se isso ocorre por saturação do mercado, má-formação profissional ou ambos.

 

  • Gestão: refere-se à atuação da coordenação, composição e funcionamento dos colegiados, bem como à organização do Núcleo Docente Estruturante (NDE), unidade responsável por formular o projeto pedagógico do curso e estabelecer as vivências acadêmicas. Nenhuma das 40 propostas analisadas fez referência à estrutura e ao funcionamento, contrariando a Resolução nº 1/2010, da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes/MEC). Além disso, apesar de 38 propostas preverem a atuação de médicos-veterinários como coordenadores, em 33 deles a carga horária dividia-se com a docência em mais de uma disciplina, devido ao quadro reduzido de profissionais para ministrar aulas.

 

  • Metodologia e inovação: identifica competências e habilidades relacionadas, especialmente, às novas tecnologias, exigidas pelas novas DCNs. Os alunos de EaD, além de sofrerem com as mesmas dificuldades dos cursos noturnos, ainda são negativamente impactados por não estarem diariamente no ambiente de uma escola veterinária. “O contato com o animal, os laboratórios, o campo é o que vai realmente formar com qualidade o futuro profissional”, defende a presidente da CNEMV.

  • Formação profissional: mostra como os estudantes estão sendo preparados, a qualificação do corpo docente e técnico e o perfil dos responsáveis pela formação dos novos profissionais. Segundo a comissão, nenhum dos 40 cursos avaliados teve avaliação satisfatória nessa dimensão nem atendeu às novas DCNs. Trata-se de cursos majoritariamente focados em clínica e cirurgia de pequenos animais, basicamente formando médicos-veterinários de pets, sem densidade em outros conteúdos obrigatórios, como saúde pública, bem-estar, Medicina Veterinária Legal, animais de produção e animais silvestres.

Os três cursos em horário integral preveem, por semestre, 467 horas de atividades práticas. Já os 36 cursos que funcionam em apenas um turno ministram uma média de 398 horas. Ou seja, mesmo com aulas corridas, percebe-se que não é possível entregar o conteúdo prometido.

  • Corpo docente: dentre os 40 cursos, 12 funcionam sob a condução de apenas cinco docentes. Apenas dois deles possuem 21 professores. E o número médio de docentes por curso foi de 10,1. A maior parte (52,5%) apresentou dez ou menos professores. A título de comparação, a Universidade Federal de Goiás, na qual uma das integrantes da comissão atua, possui 65 professores nos cursos de Medicina Veterinária e Zootecnia.

 

  • Infraestrutura: as propostas foram omissas, sem descrever as exigências para atender às DCNs em relação ao espaço físico e às instalações voltadas à contextualização dos conteúdos aos alunos nas salas de aula, tampouco mencionaram o acervo bibliotecário.
    Mesmo após o olhar técnico da comissão e os pareceres insatisfatórios, os projetos foram aprovados pela Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres/MEC) e os cursos encontram-se ativos ou em vias de serem autorizados.

Vale lembrar que o CFMV não tem poder de veto sobre a abertura dos novos cursos, porém se comprometeu a tomar providências sobre a situação identificada pela CNEMV, que põe em xeque os critérios de liberação de novos cursos de graduação em Medicina Veterinária.

Além da ACP, o presidente do CFMV, Francisco Cavalcanti, assegurou a articulação com os ministérios da Educação, Saúde, Casa Civil e o Poder Legislativo para apresentar a Carta de Mato Grosso, em defesa da qualidade do ensino 100% presencial para a Medicina Veterinária. “Meu grande sonho é que qualquer curso da nossa área tenha o aval definitivo do CFMV, após análise aprofundada, banindo irremediavelmente o EaD na graduação.”

Evolução dos cursos de Medicina Veterinária no Brasil – 1980-2022

Fonte: e-MEC (nov. 2022)

“É um crime o que essas instituições estão fazendo, enganando os estudantes e a sociedade”, conclui Maria José.

Assessoria de Comunicação do CFMV

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