No dia 02 de dezembro de 2020, o médico-veterinário Raffael de Oliveira (@raffammv) viveu uma das experiências mais surreais da vida. Acostumado ao trato social com seres humanos por ter trabalhado como técnico de enfermagem, ele recebeu o tutor de um husky siberano que desejava castrar o animal.
Para surpresa dele e da dona da clínica veterinária, Marcelle Hazonani, o tutor, que disse ser advogado, recusou o atendimento do Dr. Raffael e não quis assinar o termo de autorização de cirurgia, usando vocabulário racista. O médico-veterinário é negro.
Tudo ocorreu no interior do Rio de Janeiro, em Cidade Nova, no município de Iguaba.
Natural de Teresópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro, ele é graduado pela UNIFESO, em 2019. Conta que o “ingresso e manutenção no curso foi um caminho árduo, porque precisei conciliar os plantões na enfermagem e as atividades na universidade, foi bem difícil, mas com apoio da família e de amigos, eu venci”.
“Minha turma era um reflexo claro do que chamamos de racismo estrutural no Brasil. Digo isso porque num contexto de 110 alunos que iniciaram o curso, eu era um dos poucos alunos negros. Desse grande grupo, apenas 57 permaneceram e concluíram o curso. Apesar desse contraste, tive a oportunidade de participar de uma turma muito acolhedora e amiga”, relatou em uma postagem em rede social logo após o ocorrido.
O caso está sob investigação policial, após ele ter registrado queixa pelo crime de injúria racial contra o agressor. O Regional onde ele está inscrito (CRMV-RJ) e a dona do estabelecimento foram solidários desde o primeiro momento.
Uma série de reportagens e materiais gráficos publicados pelos Conselhos Regionais de Medicina Veterinária da Bahia e do Paraná expõe esse caso, conta outros semelhantes e relata a reação de profissionais afrodescendentes que estão se organizando para lutar contra o racismo.
Conversamos longamente com Raffael de Oliveira em fevereiro de 2021. Em tom tranquilo e amigável, ele relatou seus esforços como estudante, as dificuldades e alegrias como médico-veterinário e contou sobre os projetos para o futuro. Conheça essa pessoa cativante:
1- Logo após esse episódio, o senhor participou de uma live em dezembro, na qual falou de sua tristeza sobre o episódio, sobre o abalo psicológico sofrido. Hoje como está?
Como eu relatei sobre o fato de ter sofrido abalo psicológico (…) hoje graças a Deus, com apoio de minha família, isso é sempre muito importante, desde sempre eu sempre tive uma boa base familiar, isso para mim foi superimportante, fundamental em todo esse processo. Fui abraçado por todos da minha família, além de amigos e pessoas que até sem me conhecer vieram dando todo apoio, toda atenção ao caso e toda ajuda.
2- Ocorreu algum progresso no âmbito da Justiça depois de ter levado ao conhecimento da Polícia?
Eu entrei com um boletim de ocorrência na primeira vez, na delegacia, ai entrei com Recurso on-line pelo fato da pandemia. Então o que ocorreu: esse recurso acabou não sendo computado perfeitamente e eu fui contatado até pela Globo News para que eu pudesse dar uma entrevista sobre esse fato, só que quando eu fui olhar o boletim de ocorrência, havia prescrito porque não havia dado continuidade.
Então eu entrei novamente com outro Boletim de Ocorrência e agora estou realmente aguardando o fato: o agente da Polícia Civil que ficou encarregado de colher o meu depoimento, colher o depoimento novamente da proprietária da clínica, ficou agora de procurar o senhor, que vai ser chamado como depoente para a gente poder dar prosseguimento. Estou aguardando os trâmites jurídicos.
3- O senhor disse que sempre foi acolhido pelos colegas de faculdade e profissão. Esse apoio foi presente no episódio?
Houve todo apoio da classe de profissão, a classe de amigos, foram maravilhosos comigo, sempre muito presentes comigo. Algumas pessoas que eu tenho contato já há bastante tempo, professores que eu nem imaginava, todo mundo me contatando, fui bem acolhido e me senti bem abraçado pela classe e pelo nosso Conselho [CRMV-RJ].
4- O caso ficou conhecido nacionalmente devido à atuação do Afrovet. O senhor já conhecia esse grupo?
Eu conheci através de uma amiga minha, ela já conhecia o trabalho da Afrovet através de uma amiga da faculdade. Ela foi falando, me apresentou, divulgando meus trabalhos para a Afrovet. A Janaína Melo, por ser clara e também médica, pais médicos, foi sempre uma ‘parceirona’ de faculdade e ela quem veio me apresentando, uma mente muito aberta, uma pessoa muito magnífica, além de super estudada. Ela quem introduziu a Afrovet em minha vida.
5- Na região serrana do Rio de Janeiro, segundo os comentários postados durante a live, o senhor é um conhecido “gateiro”. Como é ser formado há cerca de um ano e já desfrutar desse prestígio junto aos tutores?
Eu vim da área de saúde humana, eu sou técnico em enfermagem já há bastante tempo. Através dos cuidados da saúde com o ser humano eu consegui ter minha estabilidade pessoal para poder estar galgando a minha formação profissional, a minha faculdade, minha graduação.
Esse cuidado já vem junto com essa confiança que os tutores agora dos pets, já vem comigo também da própria confiança que eles depositaram como seres humanos comigo. Para eles, deixar um animal comigo, seja um felino, que é um ser, como todos os animais, tem muito daquele entendimento, estudos diários… Eles [os tutores] têm muito da credibilidade maior. Isso nos motiva muito e faz a gente estar estudando mais a cada dia, isso que nos move.
6- Sua orientação sempre foi para clínica de pequenos ou desejou/deseja experimentar outro nicho?
Clínica de pequenos, nem sempre. Eu sempre fui muito amplo no conhecimento. Sempre fui voltado para a área de produção, agora estou em um projeto de aquicultura em uma comunidade do Rio de Janeiro, o Complexo do Turano. Isso é uma coisa que me move muito também.
O benefício que você traz para a pessoa do conhecimento de poder produzir o seu próprio alimento em um pequeno espaço, seja com frango ou com peixe, que também é uma área que eu adoro, seja com compostagem. A nossa área é magnifica, ela pode nos colocar em vários campos.
7- A partir de sua experiência pessoal, do apoio que teve da clinica, o que o senhor pode dizer a algum profissional que sofra ataque semelhante?
Eu realmente fui muito acolhido pela proprietária da clínica, então eu peço aos profissionais de qualquer área de sempre fazer o seu trabalho correto, fazer o trabalho de uma forma profissional, da forma mais idônea possível e sempre respaldado.
A partir do momento que nós trabalhamos de uma forma super-profissional e sempre idônea, a gente acaba não deixando margem para que possam ser comentados nossas falhas ou erros.
Mesmo que isso possa acontecer, mas a gente procurar sempre estar respaldado e sempre procurando fazer o melhor e com humildade sempre.
Procurar fazer o melhor, sempre correto, é muito importante.
Estudar o tempo todo e adquirir conhecimento: isso traz todo respaldo e toda segurança na hora de nosso atendimento, ainda mais em nossa área que está em plena transformação, é aprendizagem todo dia e a gente não pode ficar para trás.
8- E na sua visão, o que pode ser feito para diminuir/eliminar as desigualdades étnicas na Medicina Veterinária?
A gente está batalhando cada vez mais no estudo, está conscientizando cada vez mais nossa sociedade, nosso meio, quanto é importante o estudo, quanto é importante o preparo, uma boa alimentação, um bom lar, uma boa estrutura, que isso é fundamental para um futuro mais próspero, um futuro melhor para todos nós.
9- E quais os seus planos para o futuro?
Eu tenho vários projetos! Estou caminhando na parte da cirurgia, sabe? Mas sou apaixonado pela área da reprodução. E no meu projeto que comentei antes, na comunidade do Rio de Janeiro, é o projeto modelo nós iremos criar em consórcio com tilápia do Nilo, bagre africano, em dois tanques, ai fazendo compostagem, além de implementar uma horta comunitária. E no futuro vou trabalhar com criação de galinhas poedeiras. A agricultura familiar hoje em dia, ajuda a matar muita fome e é uma parte da economia de nosso país. Isso é um dos nossos projetos e tem muitos mais!